A técnica jurídica reencontra o bom senso: a aplicação do in dubio pro reo na Lei Maria da Penha
Em meio ao cenário turbulento de julgamentos marcados por automatismos e condenações baseadas exclusivamente em relatos frágeis, uma decisão recente do Superior Tribunal de Justiça (STJ) surge como um raro facho de lucidez.
Embora sem efeito vinculante, o acórdão relatado pela Ministra Marluce Caldas no AREsp 3007741-AM oferece uma aula de técnica jurídica e respeito aos princípios constitucionais — especialmente à presunção de inocência e ao in dubio pro reo.
O caso concreto: entre alegações e provas frágeis
A controvérsia girou em torno de suposta agressão física no contexto da Lei Maria da Penha.
O Ministério Público denunciou o réu com base em relato da vítima, fotos não identificadas e mensagens de WhatsApp sem perícia.
O juízo de primeiro grau absolveu o acusado por insuficiência de provas, e a sentença foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Amazonas, com base em:
- contradições nos depoimentos da vítima, especialmente quanto à data dos fatos;
- ausência de provas judicializadas que corroborassem o relato;
- fragilidade do exame de corpo de delito indireto.
A posição da Ministra Marluce Caldas: técnica e constitucional
A relatora manteve a decisão de absolvição por reconhecer a impossibilidade de reexame das provas em sede de recurso especial.
Mas, mais do que isso, reafirmou a exigência de prova robusta e judicializada como requisito indispensável à condenação.
Essa postura revela um compromisso com a Constituição Federal, sem se curvar a pressões ideológicas ou emocionais.
Destacam-se os seguintes fundamentos:
- O depoimento da vítima, embora importante, não basta por si só para condenar.
- O exame de corpo de delito sem comprovação de identidade ou data compromete sua validade.
- A aplicação do princípio do in dubio pro reo decorre da falta de certeza na autoria e materialidade.
Um alerta necessário: o julgado não resolve a atecnia dominante
A decisão não tem efeito vinculante e, portanto, não impede que magistrados continuem julgando com base em percepções subjetivas, desconsiderando os limites constitucionais da jurisdição penal.
Ainda se vê com frequência:
- condenações baseadas exclusivamente em depoimentos frágeis;
- uso automático da Lei Maria da Penha como mecanismo de inversão do ônus da prova;
- desconsideração da presunção de inocência como pilar do devido processo legal.
A importância de reconhecer os limites da prova
O caso reafirma uma máxima jurídica muitas vezes esquecida: não se pode condenar sem prova incontestável.
O desejo legítimo de combater a violência doméstica não justifica a flexibilização de garantias fundamentais.
Ao contrário, o Estado deve:
- investigar adequadamente;
- produzir provas confiáveis;
- assegurar o contraditório e a ampla defesa.
Negar esses princípios é transformar a nobre causa da proteção da mulher em um instrumento de injustiça.
Conclusão: entre a técnica e a responsabilidade
A decisão analisada é um exemplo de coragem jurídica. Diante de uma sociedade que clama por punição, o Judiciário precisa manter-se fiel ao direito.
O respeito ao princípio da presunção de inocência não é complacência com o agressor, mas compromisso com a justiça.
Que essa luz no fim do túnel não seja abafada por decisões apressadas ou julgamentos baseados em narrativas frágeis.
O processo penal não pode ser instrumento de vingança — deve ser expressão da legalidade e da verdade.
Link da Decisão Monocrática – https://processo.stj.jus.br/processo/monocraticas/decisoes/?num_registro=202502850510&dt_publicacao=03/10/2025%27


