A Inconstitucionalidade do Deferimento Parcial da Justiça Gratuita: Análise da Antinomia entre o CPC, a CF/88 e a Lei nº 1.060/50

O deferimento parcial da justiça gratuita é uma prática que tem gerado intensos debates no meio jurídico brasileiro, devido à sua evidente incompatibilidade com os princípios constitucionais e a legislação infraconstitucional. Este artigo visa analisar a antinomia existente entre o art. 98, § 5º do Código de Processo Civil (CPC), o art. 5º, inciso LXXIV […]

A Inconstitucionalidade do Deferimento Parcial da Justiça Gratuita: Análise da Antinomia entre o CPC, a CF/88 e a Lei nº 1.060/50

Sumário

O deferimento parcial da justiça gratuita é uma prática que tem gerado intensos debates no meio jurídico brasileiro, devido à sua evidente incompatibilidade com os princípios constitucionais e a legislação infraconstitucional.

Este artigo visa analisar a antinomia existente entre o art. 98, § 5º do Código de Processo Civil (CPC), o art. 5º, inciso LXXIV da Constituição Federal (CF/88), e o art. 9º da Lei nº 1.060/50, com o objetivo de demonstrar a inconstitucionalidade dessa prática.

O Art. 98, § 5º do CPC e a Criação do Deferimento Parcial

O CPC/2015 introduziu, em seu art. 98, § 5º, a possibilidade de concessão parcial da justiça gratuita.

O dispositivo estabelece que “a gratuidade pode ser concedida para cobrir apenas parte das despesas do processo ou para isentar o beneficiário de apenas algumas das obrigações processuais”.

Em tese, tal previsão objetiva atender a casos em que a parte possui condição financeira de arcar parcialmente com os custos do processo.

O Conflito com o Texto Constitucional

Não há como se admitir o parcial deferimento da assistência judiciária, mesmo com a inovação legislativa do §º 5º do art. 98 do CPC, visto que esta não comporta, pela sua própria essência, uma divisão; neste ponto vale citar comentário de Fredie Didier Júnior e Rafael Oliveira:

Aí reside, aliás, mais uma distinção entre o benefício da gratuidade e a assistência judiciária: esta jamais poderá ser concedida parcialmente, pois tem por objeto a assistência da parte em juízo, que é, por natureza, indivisível”(in Benefício da Justiça Gratuita, 4ª edição, Ed: JusPodivm, 2009. P. 23).

O art. 5º, inciso LXXIV da CF/88 é categórico ao dispor que o “Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

A redação não abre margem para interpretações que limitem ou condicionem a gratuidade da assistência judicial. Assim, qualquer legislação infraconstitucional que contrarie essa garantia constitucional é, por definição, inconstitucional.

A Previsão da Lei nº 1.060/50

A Lei nº 1.060/50, que regulamenta a assistência judiciária gratuita no Brasil, também assegura, em seu art. 9º, que a gratuidade deve ser concedida de forma ampla a todos aqueles que não possuam meios para arcar com os custos do processo sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. Essa previsão corrobora o caráter integral da assistência jurídica, conforme previsto na CF/88.

Veja que o artigo acima, sendo lei especial não foi expressamente revogado pelo NCPC, assim é possível concluir que está em plena vigência, sendo norma especial prevalente sobre a norma geral.

A Prática do Deferimento Parcial e Seus Impactos

Apesar da evidente inconstitucionalidade, não é raro encontrar magistrados que deferem a justiça gratuita de forma parcial, especialmente com base no art. 98, § 5º do CPC.

Trata-se claramente de uma situação atípica, para não dizer impensável, pois ao mesmo tempo, e fundada nas mesmas razões de decidir ou na falta dela, considerando condição social/financeira da parte – DEFERE ou INDEFERE o benefício pretendido, ao que parece modulando o estado de NECESSIDADE/MISERABILIDADE.

Tal prática gera desigualdade no acesso à justiça, ao impor a partes hipossuficientes a necessidade de arcar com custos processuais que muitas vezes são inviáveis. Além disso, tal postura desconsidera o caráter absoluto da norma constitucional e subverte o princípio da isonomia.

Jurisprudência Divergente

Ainda que absurda, a tese do deferimento parcial encontra apoio em precedentes judiciais. Tribunais têm aplicado o art. 98, § 5º do CPC para conceder a gratuidade de forma limitada, gerando insegurança jurídica e desigualdade no tratamento das partes.

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE COMPLEMENTAÇÃO DE SEGURO DPVAT. JUSTIÇA GRATUITA. DEFERIMENTO PARCIAL. IMPOSSIBILIDADE. HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA EVIDENCIADA. Não há a possibilidade de deferimento parcial da assistência judiciária, devido à sua essência indivisível. Diante do pedido, deve o magistrado optar pela concessão ou não do benefício, em sua totalidade. (TJ-MG – AC: 10433120312510002 MG, Relator: Estevão Lucchesi, Data de Julgamento: 18/07/2019, Data de Publicação: 26/07/2019)

Existindo outros:

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE PROCEDIMENTO COMUM – JUSTIÇA GRATUITA – DEFERIMENTO PARCIAL – HIPOSSUFICIÊNCIA FINANCEIRA COMPROVADA – BENEFÍCIO INTEGRAL. 1- A pessoa natural com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios tem direito à gratuidade de justiça, presumindo-se verdadeira a alegação de insuficiência financeira deduzida exclusivamente por pessoa natural (Código de Processo Civil, arts. 98 e 99, § 3º). 2 – Deferido o benefício da justiça gratuita na integralidade, não havendo fundadas razões, o juiz não pode na sentença restringir esse direito revogando ou limitando o favor legal por razões subjetivas. (TJ-MG – AC: 10433130253167001 MG, Relator: José Flávio de Almeida, Data de Julgamento: 31/07/2019, Data de Publicação: 08/08/2019)

AGRAVO DE INSTRUMENTO – JUSTIÇA GRATUITA – DEFERIMENTO PARCIAL – IMPOSSIBILIDADE. Inexistência de deferimento parcial em matéria de Justiça Gratuita. A Justiça Gratuita é absoluta e integral, não o juiz separar o que o beneficiário vai pagar ou não. (TJ-MG – AI: 10024062770110001 Belo Horizonte, Relator: Batista de Abreu, Data de Julgamento: 14/03/2007, Câmaras Cíveis Isoladas / 16ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 27/04/2007)

JUSTIÇA GRATUITA – DEFERIMENTO PARCIAL APENAS PARA ISENTAR O REQUERENTE DO BENEFÍCIO DO RECOLHIMENTO DAS CUSTAS INICIAIS – ARTIGO 98, § 5º DO CPC – INAPLICABILIDADE – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTO PARA INFIRMAR A DECLARAÇÃO DE POBREZA – JUSTIÇA GRATUITA DEFERIDA TOTALMENTE. Afirmada condição de pobreza, o benefício da gratuidade deve ser deferido até prova em contrário, não podendo o magistrado, sem fundadas razões, indeferi-lo, ou deferi-lo parcialmente. AGRAVO PROVIDO. (TJ-SP – AI: 20758754420208260000 SP 2075875-44.2020.8.26.0000, Relator: Andrade Neto, Data de Julgamento: 18/05/2020, 30ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 18/05/2020)

Por outro lado, há decisões que reconhecem a inconstitucionalidade dessa prática, reafirmando o direito à assistência jurídica integral.

Conclusão

Diante da clara antinomia entre o art. 98, § 5º do CPC, o art. 5º, inciso LXXIV da CF/88 e o art. 9º da Lei nº 1.060/50, é evidente que o deferimento parcial da justiça gratuita é inconstitucional.

A garantia de assistência jurídica integral e gratuita é um

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