A Lei n.º 12.153/09, que criou os Juizados Especiais da Fazenda Pública, tem como objetivo garantir um procedimento mais célere, acessível e simplificado para o julgamento de demandas de menor complexidade, quando o polo passivo é composto por pessoas jurídicas de direito público. No entanto, a possibilidade de incluir, no polo passivo, pessoas físicas ou jurídicas de direito privado em litisconsórcio com entes públicos levanta questionamentos sobre a manutenção da competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública.
O ponto de partida para essa análise é o artigo 5º da Lei n.º 12.153/09, que determina a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública para processar, conciliar e julgar causas cíveis de interesse dos Estados, Municípios, Distrito Federal e suas autarquias, fundações e empresas públicas, até o valor de 60 salários mínimos. Embora a lei não mencione expressamente o litisconsórcio com pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, a interpretação jurisprudencial e doutrinária é que tal circunstância, por si só, não afasta a competência do Juizado Especial.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem reiteradamente decidido que, mesmo que haja a presença de pessoa física ou jurídica de direito privado no polo passivo, a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública se mantém, desde que o fundamento principal da demanda esteja relacionado a uma relação jurídico-administrativa entre o ente público e o particular. Assim, a simples inclusão de pessoa física ou jurídica privada em litisconsórcio passivo não implica na exclusão da competência do Juizado Especial da Fazenda Pública.
Um exemplo típico dessa situação ocorre quando um servidor público, pessoa física, é litisconsorte com a administração pública em ações que discutem questões administrativas, como responsabilidade civil por atos cometidos no exercício da função. Nesses casos, a relação jurídico-administrativa entre o ente público e o particular permanece o eixo central da controvérsia, o que justifica a manutenção da competência do Juizado.
Da mesma forma, a presença de pessoa jurídica de direito privado no polo passivo, como uma concessionária de serviço público, também não afasta a competência do Juizado. Aqui, a controvérsia continua a envolver questões de direito público, ligadas à delegação de serviço público ou à relação jurídico-administrativa entre o ente público e o particular. A inclusão de um litisconsorte privado, portanto, não descaracteriza o objeto da ação, que segue sendo de interesse público e, por consequência, dentro da competência do Juizado Especial da Fazenda Pública.
No caso das pessoas físicas, é importante observar que a natureza da relação entre as partes é o elemento determinante para a definição da competência. Se a pessoa física está no polo passivo em razão de uma relação jurídica de direito privado, totalmente alheia à questão pública ou administrativa, pode-se cogitar a exclusão da competência do Juizado Especial da Fazenda Pública, uma vez que a Lei nº 12.153/09 foi concebida para tratar de litígios envolvendo entes públicos em relações de natureza público-administrativa. No entanto, quando a pessoa física está no polo passivo como coautora de atos ligados à administração pública, a competência é mantida.
Em termos práticos, isso significa que a participação de pessoa física no polo passivo, ao lado de um ente público, deve ser cuidadosamente analisada. Se a pessoa física atua, por exemplo, como agente público ou em nome de um ente público, a ação mantém a natureza de uma demanda administrativa e, portanto, pode continuar sendo processada no Juizado Especial da Fazenda Pública.
Ademais, a jurisprudência considera que, desde que a complexidade da causa se mantenha dentro dos limites permitidos pela Lei dos Juizados Especiais, o litisconsórcio passivo com pessoa física ou jurídica de direito privado não representa, por si só, um impedimento para o processamento da ação no Juizado Especial da Fazenda Pública.
Em resumo, a inclusão de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado no polo passivo de ações perante os Juizados Especiais da Fazenda Pública não exclui automaticamente a competência prevista na Lei n.º 12.153/09. O fator determinante para a definição da competência é a natureza da relação jurídica discutida, que deve estar relacionada ao direito público, em especial à relação jurídico-administrativa envolvendo o ente público. Enquanto a controvérsia principal residir nesse âmbito, a competência do Juizado Especial da Fazenda Pública é preservada, garantindo-se o processamento célere e simplificado dessas demandas.
Assim, a jurisprudência e a doutrina reconhecem que a presença de litisconsortes, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, não afasta a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, desde que a causa central envolva questões de direito público, mantendo a lógica de simplicidade e acessibilidade que norteia os Juizados Especiais.
Precedentes de nossos tribunais:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXCLUSÃO DE PESSOA JURÍDICA DE DIREITO PRIVADO DO POLO PASSIVO. AGRAVO DO MUNICÍPIO CORRÉU. 1. Litisconsórcio passivo entre ente público e particular. 2. Discussão a envolver responsabilidade civil solidária. 3. Admissibilidade. 4. Competência atraída pelo ente público no polo passivo, sem impedimento legal de formação de litisconsórcio passivo com particular. 5. Inteligência do artigo 5º, inciso II, da Lei nº 12.153/09. 6. Agravo provido. (TJ-SP – Agravo de Instrumento: 01116249420248269061 São Paulo, Relator: Dimitrios Zarvos Varellis – Colégio Recursal, Data de Julgamento: 22/08/2024, 3ª Turma Recursal de Fazenda Pública, Data de Publicação: 22/08/2024)
CONFLITO DE COMPETÊNCIA – JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA – LITISCONSÓRCIO PASSIVO NECESSÁRIO DO ENTE PÚBLICO E PESSOA FÍSICA – AUSÊNCIA DE VEDAÇÃO LEGAL. O litisconsórcio passivo, se necessário, não desloca a competência dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, desde que, pelo menos um dos litisconsortes, integre o rol dos legitimados previsto no inc. II, art. 5º, Lei 12.153/2009. (TJ-MG – CC: 10000204667414000 MG, Relator: Luzia Divina de Paula Peixôto (JD Convocada), Data de Julgamento: 27/08/2020, Data de Publicação: 31/08/2020)
CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA. LITISCONSÓRCIO PASSIVO. A EXISTÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO FORMADO POR ENTE PÚBLICO E PARTICULAR. A existência de litisconsórcio passivo formado por ente público e particular não afasta a competência do Juizado Especial da Fazenda Pública para processar e julgar a demanda. Inteligência dos artigos 2º e 5º, inciso II, da Lei nº 12.153/09 e Resolução nº 837/2010 do Conselho da Magistratura. CONFLITO DE COMPETÊNCIA ACOLHIDO. UNÂNIME. (TJ-RS – CC: 70066140328 RS, Relator: Iris Helena Medeiros Nogueira, Data de Julgamento: 16/09/2015, Nona Câmara Cível, Data de Publicação: 21/09/2015)
Processo civil. Conflito negativo de competência. Ação ordinária ajuizada perante o Juizado Especial da Fazenda Pública. Litisconsórcio passivo facultativo e ulterior. Inclusão de pessoa jurídica de direito privado. Competência absoluta do Juizado não derrogada. Ausência de previsão legal expressa. Aplicação subsidiária da Lei 9.099/95, art. 10. Litisconsórcio. Possibilidade. Precedentes qualificados de outros Tribunais de Justiça.Conflito de competência procedente. TJ-PR 00020775120208160004 Curitiba, Relator: Salvatore Antonio Astuti, Data de Julgamento: 07/08/2023, 1ª Câmara Cível, Data de Publicação: 09/08/2023)