Quando o Excesso de Contato do Cliente se Torna Abuso de Direito?
O advento do processo eletrônico (PJe, e-SAJ) revolucionou a advocacia, trazendo um nível de transparência sem precedentes.
Se antes o acompanhamento processual exigia uma diligência presencial ao fórum — um ato que demandava tempo, paciência e custos, hoje, o cliente acessa os autos do seu sofá, em segundos, pelo celular.
Contudo, essa facilidade de acesso gerou um efeito colateral complexo: o excesso de interações entre cliente e advogado.
Clientes bem-intencionados passam a monitorar o processo em tempo real e, impulsionados pela instantaneidade de ferramentas como o WhatsApp, exigem explicações imediatas sobre cada “movimentação”.
O problema central é que o cliente, frequentemente, vê o ato processual antes mesmo da intimação formal do advogado, um “gap” que pode demorar dias.
Essa assimetria de informação transformou o dever de informar em uma demanda por “aulas de direito” em tempo real, muitas vezes sobre atos irrelevantes.
Este artigo analisa como essa nova dinâmica, quando levada ao extremo, ultrapassa o mero inconveniente e pode configurar abuso de direito, conforme o Art. 187 do Código Civil.
Analisaremos também como essa prática drena a gestão de tempo do advogado, prejudicando, em última instância, a qualidade do serviço prestado a todos os clientes.
A Mudança de Paradigma: Do Fórum Físico ao Portal Digital 24/7
No modelo do processo físico, existiam barreiras naturais que funcionavam como filtros para a ansiedade.
O custo do deslocamento, a burocracia do balcão e a linguagem técnica dos autos físicos faziam com que o advogado fosse o “guardião” da informação.
A comunicação era assíncrona; o advogado filtrava o ruído e reportava ao cliente apenas as decisões relevantes.
Com o processo eletrônico, o cliente obteve o mesmo nível de acesso do advogado, mas sem o filtro do conhecimento técnico.
Ele se torna um “vigia” do processo, monitorando cada despacho de “mero expediente”.
A estrutura de tópicos abaixo, ilustra essa transformação e a origem do conflito:
1. Acesso à Informação
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Processo Físico (Modelo Antigo): Lento, burocrático e mediado pelo advogado.
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Processo Eletrônico (Novo Modelo): Instantâneo, disponível 24/7 e com acesso direto pelo cliente.
2. Filtro de Ansiedade
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Processo Físico (Modelo Antigo): Alto, devido aos custos, tempo e necessidade de deslocamento.
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Processo Eletrônico (Novo Modelo): Nenhum, pois o acesso é facilitado por aplicativos e WhatsApp.
3. Ritmo de Comunicação
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Processo Físico (Modelo Antigo): Assíncrono, onde o advogado informa o cliente sobre o que é relevante.
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Processo Eletrônico (Novo Modelo): Síncrono, com o cliente exigindo respostas em tempo real.
4. Expectativa do Cliente
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Processo Físico (Modelo Antigo): Paciência, com aceitação de esperas de dias ou semanas.
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Processo Eletrônico (Novo Modelo): Imediatismo, com expectativa de respostas em minutos.
5. Fonte de Conflito
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Processo Físico (Modelo Antigo): A demora no resultado final do processo.
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Processo Eletrônico (Novo Modelo): A demora na resposta do advogado sobre atos processuais irrelevantes (aos quais o cliente tem acesso imediato).
O Gap de Informação: Por que o Cliente Vê a Decisão Antes do Advogado?
O epicentro do conflito reside na incompreensão sobre o funcionamento do sistema judicial.
O cliente não entende a diferença crucial entre “visualizar uma movimentação” e “ser formalmente intimado”.
Em termos simples, o processo funciona assim:
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A Movimentação (Portal PJe/e-SAJ): Um servidor ou juiz pratica um ato (ex: “Decisão proferida”, “Juntada de petição”). O cliente, monitorando o portal, vê essa linha de texto e sua ansiedade é ativada. Isso é apenas um registro interno, não uma notificação legal.
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A Intimação (Diário de Justiça – DJe): Dias depois, esse ato é formatado e enviado para publicação no Diário de Justiça Eletrônico (DJe). O prazo legal do advogado, sua obrigação de agir, só começa a contar no primeiro dia útil seguinte à data desta publicação.
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A Intimação (Portal): Em outros casos, a intimação ocorre diretamente no portal do tribunal. Mesmo nesta modalidade, a lei (e o STJ) entende que o prazo só começa após a consulta efetiva do advogado, ou ao final de um prazo de 10 dias corridos caso ele não abra a intimação.
O cliente, ao ver a movimentação e contatar o advogado pelo WhatsApp, está, sem saber, pedindo que ele trabalhe antes que seu prazo legal tenha sequer começado.
Ele exige uma análise imediata de uma informação que, para o advogado, ainda não é “acionável”.
O cliente, ao monitorar, toma para si o papel de “fiscal” do processo, mas transfere a responsabilidade da análise em tempo real de volta para o advogado.
O Dever de Informar do Advogado vs. A Aula de Direito Exigida
A defesa de limites na comunicação não significa, de forma alguma, que o advogado esteja se esquivando de suas obrigações. Pelo contrário, trata-se de preservar a capacidade de cumpri-las.
O que o Código de Ética da OAB Realmente Exige?
O Código de Ética e Disciplina (CED) da OAB fundamenta a relação cliente-advogado na confiabilidade e honestidade. O advogado tem, sim, o dever de informar.
Contudo, o Tribunal de Ética esclarece o escopo desse dever: o advogado deve informar o cliente de forma clara e inequívoca sobre os “eventuais riscos da sua pretensão”.
O dever de informar é qualitativo, focado no mérito, nos riscos e nas consequências relevantes da causa.
O Código não exige, em lugar nenhum, que o advogado se torne um tutor processual 24/7, obrigado a explicar o que significa “concluso para despacho”, “juntada de petição de ciência” ou outros atos de impulso oficial que são irrelevantes para o resultado final.
A demanda do cliente (impulsionada pela tecnologia) tornou-se quantitativa (explicações sobre cada movimentação), distorcendo o dever ético, que é qualitativo (informações sobre o relevante).
O Custo Oculto da Interrupção: Mais que 15 Minutos
O advogado estima que cada interação desse tipo consome, no mínimo, 15 a 20 minutos.
O problema é muito maior do que o tempo direto.
Na gestão de tempo, essas interrupções são classificadas como “tarefas circunstanciais” (desnecessárias) ou “urgentes” (mas não importantes).
A advocacia eficaz exige foco profundo em tarefas “importantes” — redigir petições complexas, estudar jurisprudência, preparar-se para audiências.
Pesquisas sobre produtividade demonstram que o custo real não são os 15 minutos gastos na interrupção, mas os 15 a 20 minutos adicionais que o cérebro leva para retomar o nível de concentração anterior (o “custo de troca de contexto”).
O cliente, ao tentar “ajudar” ou “monitorar” o processo, está, inadvertidamente, sabotando a produtividade do profissional que contratou.
Ele não percebe que, ao exigir uma explicação de 15 minutos sobre um ato irrelevante, pode estar atrasando em uma hora a petição importante de outro cliente, ou até mesmo a sua própria.
O advogado é forçado a escolher entre gerenciar a ansiedade de um cliente ou cumprir os prazos de todos.
O “abuso” de um cliente prejudica o bom andamento dos processos de todos os outros.
Tese Jurídica: Quando a Exigência Excessiva Configura Abuso de Direito (Art. 187 CC)
Aqui reside o núcleo da questão: a exigência desmedida do cliente não é apenas um problema de gestão; é um ato ilícito.
Definindo o Abuso de Direito no Código Civil
O Artigo 187 do Código Civil Brasileiro é cristalino:
Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Traduzindo para nossa realidade: o cliente tem o direito à informação. Este direito é legítimo.
O “abuso” ocorre quando o exercício desse direito ultrapassa manifestamente os limites do razoável e da boa-fé objetiva.
A Posição do STJ sobre a Relação Cliente-Advogado e a Boa-Fé
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já validou a aplicação do abuso de direito na relação cliente-advogado.
No julgamento do REsp 1.724.441-TO, o STJ decidiu que o cliente comete abuso de direito ao rescindir um contrato de honorários com cláusula de êxito (quota litis) de forma imotivada, às vésperas do resultado final favorável.
A ratio decidendi (razão de decidir) do tribunal foi que o cliente, ao agir assim, “excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé objetiva”.
Por quê? Porque ele frustra a “legítima expectativa” do advogado de que o pacto (e sua remuneração) seria honrado até o fim.
A Tese Aplicada: Da Rescisão ao WhatsApp
Aplica-se o mesmo raciocínio, por analogia, ao excesso de comunicação.
Se o STJ considera abuso de direito o cliente frustrar a expectativa financeira (os honorários) do advogado, com muito mais razão é abuso de direito o cliente frustrar a expectativa operacional (a capacidade de trabalhar) do profissional.
O contrato de serviços advocatícios gera uma “legítima expectativa” para ambas as partes.
A expectativa do advogado é ser pago e ter as condições (tempo, foco) para realizar o serviço técnico.
A expectativa do cliente é ser informado sobre o relevante.
Quando o cliente [User Query] usa seu direito de informação para exigir “aulas de direito” sobre atos irrelevantes, em tempo real via WhatsApp, ele está violando a boa-fé objetiva.
Ele está, na prática:
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Expandindo unilateralmente o escopo do contrato (de “representação legal” para “tutoria processual 24/7”).
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Frustrando a “legítima expectativa” do advogado de poder gerenciar seu tempo para atender a todos os seus clientes com eficácia.
Portanto, o excesso de interações inúteis não é apenas “irritante”; é um ato ilícito (Art. 187 CC) por abuso de direito.
Soluções Práticas: Como Gerenciar a Comunicação de Forma Ética e Eficiente
O objetivo não é criar um “muro” entre cliente e advogado, mas sim um “canal” de comunicação que seja eficiente, proteja o foco do advogado e mantenha o cliente verdadeiramente informado.
A Solução Preventiva: O Contrato de Honorários
Muitos conflitos nascem em contratos que não foram atualizados para a era digital.
O contrato de honorários advocatícios deve prever a comunicação.
Recomenda-se a inclusão de uma Cláusula de Comunicação que defina:
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Canais Oficiais: (ex: “A comunicação oficial será feita por e-mail e reuniões agendadas. O WhatsApp é um canal de conveniência para urgências e envio de documentos, não para relatórios de andamento”).
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Frequência de Relatórios: (ex: “O cliente receberá um relatório de andamento consolidado a cada 60 dias”, ou “após cada ato decisório relevante”).
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Escopo do Serviço: Deixar claro que o contrato cobre a representação e o dever de informar, mas que “consultorias, reuniões ou explicações detalhadas sobre atos processuais de mero impulso” podem ser cobradas à parte.
Criando uma Política Clara de Atendimento via WhatsApp
A gestão de expectativas é a ferramenta mais importante. Uma “Política de Uso do WhatsApp” deve ser entregue ao cliente no início do relacionamento.
Os pilares dessa política devem incluir:
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Horários de Atendimento: (ex: Segunda a Sexta, 09h-18h). Deixar claro que mensagens fora de hora serão vistas no próximo dia útil.
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Prazos de Resposta: (ex: “Mensagens de WhatsApp serão respondidas em até 24 horas úteis”). Isso quebra o imediatismo e gerencia a ansiedade.
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Tipos de Assuntos: (ex: “Use para agendamentos e urgências. Dúvidas complexas ou sobre o andamento devem ser enviadas por e-mail para uma análise detida”).
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Consentimento e Confidencialidade: Obter o consentimento explícito do cliente para usar o WhatsApp, informando sobre os limites de confidencialidade da plataforma.
Usando a Tecnologia a seu Favor (WhatsApp Business)
O problema (WhatsApp) contém a solução. O advogado não deve, sob hipótese alguma, usar seu WhatsApp pessoal para atendimento.
A ferramenta correta é o WhatsApp Business, que é gratuito e oferece recursos desenhados para o profissionalismo:
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Mensagens Automáticas (Saudação/Ausência): Este é o “atrito” digital saudável. A mensagem de ausência (ex: “Obrigado, recebemos sua mensagem. Nosso horário de atendimento é… Responderemos em breve”) gerencia a ansiedade do cliente e devolve o controle do tempo ao advogado.
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Etiquetas (Labels): Permitem organizar a demanda (ex: “Cliente Novo”, “Prazo Urgente”, “Dúvida”) sem se perder no fluxo de mensagens.
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Perfil Comercial: Passa profissionalismo e centraliza informações do escritório.
A adoção de softwares jurídicos que enviam atualizações automáticas (proativas) também é uma solução eficaz.
Se o cliente recebe um e-mail automático informando “Seu processo teve uma nova movimentação irrelevante (juntada de petição). Nenhuma ação é necessária”, a necessidade dele de contatar o advogado diminui drasticamente.
Estratégias de Gestão de Comunicação com o Cliente
1. Contrato de Honorários
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Ação Recomendada: Incluir uma Cláusula de Comunicação explícita, definindo:
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Justificativa (Impacto): Alinha as expectativas antes que surjam conflitos e fornece um fundamento legal para os limites estabelecidos.
2. Política de Uso do WhatsApp
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Ação Recomendada: Informar o cliente logo no primeiro contato sobre:
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Justificativa (Impacto): “Re-profissionaliza” o canal de comunicação e ajuda a gerenciar a ansiedade do cliente.
3. WhatsApp Business
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Ação Recomendada: Utilizar respostas automáticas (para saudação ou ausência) e etiquetas (para organização).
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Justificativa (Impacto): Cria um “atrito” digital saudável, filtra o que é urgente e otimiza a gestão do tempo.
4. Software Jurídico
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Ação Recomendada: Adotar um sistema que envie atualizações automáticas de forma proativa.
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Justificativa (Impacto): Reduz a necessidade do cliente de “vigiar” o processo e automatiza o dever de informar.
Conclusão: Definir Limites é Proteger o Interesse de Todos
O advogado que cede ao “abuso de direito” do cliente ansioso, respondendo instantaneamente a cada impulso processual irrelevante, está, na prática, subtraindo tempo e qualidade de serviço dos seus outros clientes .
A gestão de tempo não é uma conveniência para o advogado; é um dever ético e profissional para a boa administração da justiça e para a correta execução do seu trabalho.
A advocacia de qualidade exige foco, estudo e deliberação, não reflexos instantâneos.
Definir limites claros através do contrato e de políticas de comunicação não é ser inacessível.
É ser eficaz, garantindo que o tempo do profissional seja dedicado ao que realmente importa: a defesa estratégica dos interesses do cliente.
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