A atuação do leiloeiro público é regulada por normas específicas que impõem restrições para preservar a imparcialidade e a confiança inerentes à função. Dentre essas restrições, uma das mais discutidas na atualidade diz respeito à vedação legal de exercer o comércio, direta ou indiretamente.
Contudo, a interpretação desse dispositivo legal tem gerado debates no meio jurídico, especialmente quando a atuação do leiloeiro se dá em conjunto com empresas prestadoras de serviços de apoio.
O que diz a legislação
O Decreto Federal nº 21.981/1932, ainda vigente, estabelece em seu art. 36 que o leiloeiro não pode exercer o comércio. Essa norma foi recepcionada pela Instrução Normativa DREI nº 52/2022, que reafirma a proibição.
A intenção do legislador foi clara: evitar conflitos de interesse e proteger o interesse dos comitentes e do público em geral. O receio é que o leiloeiro, dotado de fé pública, venha a utilizar sua posição para adquirir bens por preços baixos em leilões por ele conduzidos, revender posteriormente e lucrar com a operação.
Comércio x prestação de serviços
Apesar da clareza quanto à vedação ao comércio, é comum que se confundam atividades comerciais com atividades de prestação de serviços. No contexto moderno da leiloaria, isso pode gerar interpretações equivocadas.
O comércio, em sentido estrito, envolve a intermediação na circulação de bens, com a finalidade de lucro pela revenda. Já a prestação de serviços é uma obrigação de fazer, que abrange atividades como transporte, publicidade, segurança, marketing, tecnologia da informação, entre outras.
Ao constituir empresa para a realização dessas tarefas — essenciais à realização de leilões de médio e grande porte — o leiloeiro não está, por si só, infringindo a vedação legal. A natureza da atividade econômica das empresas contratadas deve ser observada com rigor técnico e jurídico.
Legalidade estrita e interpretação restritiva
O direito administrativo sancionador é regido pela legalidade estrita. Isso significa que a sanção só pode ser aplicada se houver correspondência exata entre a conduta e a norma punitiva. A interpretação extensiva, sobretudo se desfavorável ao administrado, é vedada.
Dessa forma, afirmar que a constituição de uma empresa prestadora de serviços logísticos configura “exercício do comércio” seria promover uma distorção da norma legal. Trata-se de um alargamento indevido do conceito jurídico de comércio, contrariando a lógica do próprio ordenamento.
A modernização da atividade leiloeira
Outro ponto essencial é considerar a evolução da atividade de leiloaria. A realidade atual exige uma estrutura organizacional sofisticada, que inclui diversas áreas técnicas e operacionais. Nenhum profissional consegue conduzir leilões de forma eficiente e segura sem apoio especializado.
Assim, é legítimo — e necessário — que o leiloeiro contrate terceiros para funções auxiliares, desde que não haja envolvimento em atividades comerciais proibidas. A proibição não pode ser interpretada de forma a inviabilizar o exercício regular da profissão, o que atentaria contra os princípios da razoabilidade e da livre iniciativa.
Conflitos concorrenciais e o uso indevido do processo
Infelizmente, o ambiente regulatório também pode ser utilizado como ferramenta de disputa mercadológica. Em alguns casos, denúncias são formuladas não para proteção do interesse público, mas como estratégias anticoncorrenciais.
Esse tipo de conduta, conhecido como sham litigation, representa um uso abusivo dos instrumentos legais e administrativos. Deve ser identificado e coibido, sob pena de desvirtuamento do papel das instituições fiscalizadoras.
Conclusão
A vedação ao exercício do comércio por leiloeiros deve ser interpretada com equilíbrio, técnica e respeito aos princípios constitucionais. Não se pode confundir a organização operacional legítima com o exercício ilícito da atividade comercial.
Ao aplicar sanções, é imprescindível observar a tipicidade estrita da conduta e evitar interpretações que extrapolem os limites legais. O foco deve estar sempre na proteção da imparcialidade da função, e não na punição por atividades auxiliares que, por si só, não configuram infração.