A Inconstitucionalidade do Art. 528, § 3º do CPC: Uma Análise da Antinomia com a Lei de Alimentos

1. Introdução A questão da prisão civil por dívida alimentar tem sido objeto de intenso debate no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a promulgação do Código de Processo Civil de 2015. O presente artigo visa analisar a aparente antinomia entre o § 3º do art. 528 do CPC e o art. 19 da Lei nº […]

A Inconstitucionalidade do Art. 528, § 3º do CPC: Uma Análise da Antinomia com a Lei de Alimentos

Sumário

1. Introdução

A questão da prisão civil por dívida alimentar tem sido objeto de intenso debate no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a promulgação do Código de Processo Civil de 2015.

O presente artigo visa analisar a aparente antinomia entre o § 3º do art. 528 do CPC e o art. 19 da Lei nº 5.478/68 (Lei de Alimentos), no que tange ao prazo máximo da prisão civil do devedor de alimentos.

2. O Conflito Normativo

O art. 528, § 3º do CPC estabelece que:

“Se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses.”

Por outro lado, o art. 19 da Lei nº 5.478/68 dispõe que:

“O juiz, para instrução da causa ou na execução da sentença ou do acordo, poderá tomar todas as providências necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou do acordo, inclusive a decretação de prisão do devedor até 60 (sessenta) dias.”

3. Análise da Antinomia

3.1 Critérios de Resolução

Conforme ensina Norberto Bobbio, em sua obra “Teoria do Ordenamento Jurídico”, existem três critérios fundamentais para a resolução de antinomias:

  1. Hierárquico (lex superior derogat legi inferiori)
  2. Especialidade (lex specialis derogat legi generali)
  3. Cronológico (lex posterior derogat legi priori)

3.2 Análise à Luz da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro

Um elemento fundamental para a resolução da antinomia em questão encontra-se na própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que estabelece em seu art. 2º, § 2º:

“A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.”

Este dispositivo consagra expressamente o princípio da especialidade e estabelece uma importante diretriz hermenêutica: a mera superveniência de uma lei geral (como o CPC/2015) não tem o condão de revogar ou modificar disposições específicas de lei especial anterior (Lei de Alimentos).

3.2.1 Implicações do Art. 2º da LINDB no Caso Concreto

A aplicação do art. 2º, § 2º da LINDB ao caso em análise produz importantes consequências:

  1. Preservação da Norma Especial: A Lei de Alimentos, como legislação especial anterior, mantém-se íntegra e eficaz mesmo após a entrada em vigor do novo CPC;
  2. Impossibilidade de Revogação Tácita: O advento do CPC/2015, com seu prazo diferenciado para prisão civil, não implica revogação tácita do art. 19 da Lei nº 5.478/68;
  3. Coexistência Harmônica: A LINDB determina que ambas as normas podem coexistir no ordenamento jurídico, devendo prevalecer a especial no seu âmbito de aplicação.

3.2.2 Orientação Doutrinária sobre a LINDB

Maria Helena Diniz, em seu “Curso de Direito Civil Brasileiro”, enfatiza que o art. 2º, § 2º da LINDB constitui uma “norma de sobredireito” que orienta a aplicação e interpretação das demais normas do ordenamento jurídico.

Segundo a autora, este dispositivo visa justamente evitar conflitos interpretativos como o que se apresenta entre o CPC e a Lei de Alimentos.

Carlos Roberto Gonçalves, por sua vez, destaca que a LINDB consagra o princípio da especialidade como regra de interpretação, determinando que a lei especial anterior não seja afetada pela lei geral posterior, salvo disposição expressa em contrário.

4. Análise dos Precedentes sobre a Prevalência da Lei Especial

4.1. Tribunais Estaduais

Os Tribunais de Justiça dos Estados também têm seguido esta orientação:

HABEAS CORPUS PREVENTIVO. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. ART. 733 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. INADIMPLEMENTO DE OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. DETERMINADA A EXPEDIÇÃO DE MANDADO DE PRISÃO. INSURGÊNCIA DA IMPETRANTE QUANTO À NOMEAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA COMO CURADORA ESPECIAL DO EXECUTADO POR ANALOGIA AO ART. 72, INCISO II, DO CPC. POSTERIOR RECONSIDERAÇÃO NO JUÍZO DE ORIGEM. FALTA SUPERVENIENTE DE INTERESSE RECURSAL DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL NESTE TOCANTE. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE CUSTÓDIA. TESE ACOLHIDA. DECRETO PRISIONAL PELO PRAZO DE 90 DIAS. EXEGESE DO ARTIGO 19 DA LEI DE ALIMENTOS. MÁXIMO LEGAL DE 60 DIAS. ILEGALIDADE E ABUSO DE PODER CONSTATADOS. IMPERIOSA A REDUÇÃO DO PRAZO SEGREGATÓRIO PARA 60 (SESSENTA) DIAS. “É ilegal a determinação de prisão do devedor de alimentos por prazo superior aos sessenta dias previsto no art. 19, da Lei n. 5.478/68, dispositivo que, pelo critério da especialidade, deve prevalecer sobre o prazo previsto no art. 528, § 3º, do CPC.” (Habeas Corpus (Cível) n. 0000566-13.2017.8.24.0000, de Sombrio, rel. Des. André Carvalho, j. 29-6-2017). ORDEM PARCIALMENTE CONHECIDA E, NESTA EXTENSÃO, CONCEDIDA. (TJ-SC – HC: 40201064220188240000 Criciúma 4020106-42.2018.8.24.0000, Relator: José Agenor de Aragão, Data de Julgamento: 06/06/2019, Quarta Câmara de Direito Civil)

AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO DE ALIMENTOS – DECRETO PRISIONAL – ART. 733, DO CPC – SÚMULA 309, DO STJ – PEDIDO DE PRORROGAÇÃO DO DECRETO PRISIONAL – MAIS 30 (TRINTA) DIAS – IMPOSSIBILIDADE – PRAZO MÁXIMO – 60 (SESSENTA) DIAS – LEI DE ALIMENTOS. – É cediço que o art. 733, do CPC somente permite que seja decretada a prisão civil do devedor de alimentos com relação às três últimas parcelas vencidas antes do ajuizamento da demanda, mais débitos vincendos no decorrer da ação – O prazo máximo para a prisão civil por débito alimentar é de 60 dias, por força do disposto no art. 19, da Lei n. 5.478/68 (Lei de Alimentos) – Tendo o alimentante já cumprido pena de prisão por 60 (sessenta) dias, não cabe a majoração da prisão civil por mais 30 (trinta) dias, em virtude do mesmo débito alimentar – Recurso não provido. (TJ-MG – AI: 10434070107561004 Monte Sião, Relator: Heloisa Combat, Data de Julgamento: 27/11/2014, Câmaras Cíveis / 4ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 04/12/2014)

Habeas corpus. Prisão civil. Execução de alimentos. Prazo prisional. Redução. A determinação da prisão civil, por dívida alimentar, pelo prazo de três meses, mostra-se em desacordo com o prazo prisional máximo previsto na lei de Alimentos que é de sessenta dias, razão pela qual é devida a redução do prazo prisional, considerando o caráter especial da norma, que deve prevalecer sobre o que dispõe o art. 733, § 1º, do CPC. (TJ-RO – HC: 00125306220148220000 RO 0012530-62.2014.822.0000, Relator: Desembargador Alexandre Miguel, Data de Julgamento: 17/12/2014, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: Processo publicado no Diário Oficial em 19/12/2014.)

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INADIMPLEMENTO ALIMENTAR. PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR. PRAZO VARIÁVEL DE UM A TRÊS MESES. DECRETADO POR 90 DIAS. NECESSIDADE DE FUNDAMENTAÇÃO. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. 1. (…). 2. À míngua de motivação explícita quanto à necessidade de prisão por noventa (90) dias, deve-se reduzir a medida para o prazo mínimo de trinta (30) dias. 3. Diante do aparente conflito de normas, a lei especial deve prevalecer sobre a geral, ainda que superveniente, sob pena de afronta ao art. 2º, § 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. 4. Embora o parágrafo 1º, do art. 733, do Código de Processo Civil estabeleça o limite do prazo de prisão do devedor de alimentos de até 3 (três) meses, esse dispositivo é lei geral superveniente que não poderia derrogar a regra especial da Lei de Alimentos, nº 5.478/68, que já estaria a regular a matéria, sob pena de afronta ao parágrafo 2º, do art. 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil. 5. Agravo de Instrumento conhecido e provido. (TJ-DF – AGI: 20150020126407, Relator: SILVA LEMOS, Data de Julgamento: 08/07/2015, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE: 30/07/2015. Pág.: 118)

4.1 Impacto dos Precedentes na Prática Jurídica

A consolidação jurisprudencial tem orientado a atuação dos magistrados de primeiro grau, que progressivamente têm adequado suas decisões ao limite temporal de 60 dias, mesmo após a vigência do novo CPC. Este entendimento promove:

  1. Segurança jurídica na aplicação da norma;
  2. Uniformização das decisões judiciais;
  3. Respeito à proporcionalidade na restrição da liberdade do devedor;
  4. Preservação da finalidade coercitiva da prisão civil.

5. Doutrina

Maria Berenice Dias, em seu Manual de Direito das Famílias, sustenta que “havendo conflito entre a lei especial e a lei geral, prevalece a primeira, ainda que a lei geral seja posterior.” No mesmo sentido, Flávio Tartuce defende que “a Lei de Alimentos, por ser especial, deve prevalecer sobre o CPC.”

6. Considerações Finais

A análise dos precedentes judiciais reforça de maneira inequívoca a prevalência da Lei de Alimentos sobre o CPC quanto ao prazo máximo da prisão civil do devedor de alimentos. A uniformidade das decisões nas diversas instâncias do Poder Judiciário demonstra a consolidação do entendimento pela aplicação do prazo de 60 dias, em observância ao princípio da especialidade.

7. Referências

  • BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: UnB, 1999.
  • DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. São Paulo: RT, 2016.
  • TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

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